> São Paulo, 16/08/1989
…a característica principal da obra de Aldir talvez se encontre num balanceamento de opostos que se situam entre a realidade e a abstração.
O mundo inquieto de Aldir
A exposição de Aldir Mendes de Souza, 50 anos, inclui uma dezena de grandes telas, pintadas quase todas em 1990, pelo pintor brasileiro, natural de São Paulo, Brasil.
Nestas obras a visão de campos ilimitados se alterna com a de espaços urbanos onde se abrem trechos de paisagem rural. É difícil dizer se o insistir no assunto da cidade e do campo tem alguma intenção sociológica ou se refere em tom polêmico à destruição do ambiente natural provocada pelo crescimento das metrópoles modernas. Pelo contrário o que imediatamente nos chama a atenção nestes quadros é a ausência do homem. E essa ausência parece estranha não somente nos cruzamentos das ruas da cidade, mas também na extensão dos campos que os homens invisíveis do mundo de Aldir, transformaram com a variedade de cultivos, num tabuleiro de xadrez ordenado em cores intensas.
Claro que a constante ausência de atores cria no palco uma situação de suspense, vagamente “metafísica”. Mas, em comparação com a agitação absoluta e misteriosa das “Piazze d’Italia”(Praças de Itália) de De Chirico, trata-se aqui de uma inquietude , de um desassossego que só toca de leve as obras de Aldir. De fato elas logo se livram desse desassossego transformando o interior da paisagem urbana e rural numa simples geometria de formas.
Sobretudo na série de pinturas chamada “Geometria rural”, o conteúdo está tão reduzido, tão submetido à coerência do esquema geométrico, que o resultado quase alcança a abstração. A paisagem vista de relance , como escreve justamente Massimo Bignardi na apresentação do catálogo: parece dar-se conta dos ecos distantes daquelas paisagens aéropinturas de Gerardo Dottori, como, por exemplo, “Lago umbro” de 1942. (Neste âmbito atuaram, entre os anos Vinte e Quarenta, os pintores futuristas da América Latina).
Torna-se, assim, pouco mais que um pretexto inicial para realizar um encaixe de superfícies de várias cores, muito bem alinhadas num único plano, iluminadas por uma cuidadosa gradação de valores de claro-escuro e ordenados em fuga perspéctica que as torna parecidas a um enorme “tapis rouland”, correndo para um horizonte imaginário.
Mas a sutil qualidade da matéria pictórica, puxada por contínuas vibrações atmosféricas, e a peculiaridade típica dos verdes, dos amarelos, dos vermelhos, que relembram a cor das festas brasileiras, sugerem, afinal, que a característica principal da obra de Aldir talvez se encontre num balanceamento de opostos que se situam entre a realidade e a abstração.
> Nápole, Itália, 1991
…Aldir propõe uma leitura pessoal da realidade social, em pauta ética (deontológica), cujo conteúdo é lícito derivar da óptica ou do direito, mas seguindo a categoria da “possibilidade” e recusando a categoria oposta, a da “necessidade”.
Sonhando com a cidade e o latifúndio do alto de um longo vôo em planador
“Geometrias falantes”, campos arados visualizados do alto de um vôo em planador, segmentos e escorços com perspectivas improváveis, são exemplo da mais nova figuração de Aldir Mendes de Souza, 50 anos, pintor brasileiro muito original. As planimetrias e as projeções geométricas de Aldir não tem nada a ver com as reconstruções arquitetônicas de Humberto Calzada, por exemplo, outro grande artista originário da América do Sul. Elas, melhor, tem origem numa tradição que recobra módulos cinéticos mas os coloca – observa Massimo Bignardi no prefácio do catálogo, num “âmbito de experimentação muito vivo na América do Sul, especialmente na Venezuela com as experiências estruturalistas de Jesús Soto com os “penetrables” e sobretudo de “…Carlos Cruz Diez que propõe, no jogo das oposições dos triângulos isósceles e dos contrastes das cores quentes e frias uma superação da esfera naturalista”. As onze obras apresentadas mostram até nos títulos duas diferentes mas bem relacionadas áreas temáticas; em primeiro lugar as variações sobre o tema “Áreas de cor”, painéis geométricos que pertencem ao conjunto “Círculo Cromático”, e que, eliminando qualquer forma de figuração, relembram pela sua poesia intrínseca as experiências italianas da “Aero-pintura”(Pintura aérea): são, por outro lado, exercícios requintados e teóricos no âmbito das possibilidades icônicas que os espaços sem limites, porém acabados, oferecem, segundo os critérios das geometrias esféricas ou pseudo-esféricas de influência reinmaniana, onde, como é sabido, o valor de uma constante determina a medida dos ângulos internos de um triângulo. O desejo de um controle “teórico” dos volumes é, além do mais, consoante com a total lucidez imposta pelas relações dos tons, verdadeiros exemplos de habilidade nas proporções dos cinzentos, ou dos vermelhos, recusando qualquer mínima concessão ao drama cromático.
Nestas obras, as representações dos imensos latifúndios arados, característica geo-política da América do Sul, transformam-se em campos metafísicos livres daquela rigidez que subtende uma concepção kantiana do pensamento, chegando a se qualificar por vezes, como “espaços aparentes ”maleáveis” por força da vontade e do pensamento. Aldir promove pois uma metabase, uma transformação de todos os objetos, que talvez deixasse pressentir o eco longínquo daquela “reconstrução futurista do universo”, absorvida por uma parte considerável da pintura latino-americana através das proposições do argentino Emilio Pettoruti, mas que se deixa afetar também pela história pessoal do pintor, ele que goza da condição singular de ser ao mesmo tempo artista e cientista. A vontade enorme no sentido de definir o território físico, extensão de intenções espirituais opostas , reflete-se no segundo tema da exposição, gerado pela “Releitura” da “Cidade X Campo”; título emblemático, uma vez que a presença do operador aritmético, em lugar da preposição, descreve um enunciando dentro das constantes humanas da irracionalidade ação: isto é, a mais chocante das realidades metropolitanas e a não menos perturbadora situação do latifúndio ligada aos fenômenos da exploração e destruição sistemática das riquezas naturais, temas que, infelizmente, todo o mundo bem conhece.
Parece que Aldir propõe uma leitura pessoal da realidade social, em pauta ética (deontológica), cujo conteúdo é lícito derivar da óptica ou do direito, mas seguindo a categoria da “possibilidade” e recusando a categoria oposta, a da “necessidade”. Além do mais a paixão política de Aldir é antiga e remota – observa – Massimo Bignardi – “aos relevos de matéria dos trabalhos realizados entre 1965 e 1966, como Prédios, Fábricas, obras em que se lê uma atenção declarada para o social, para as lutas dos direitos civis”.
E é por isto que as cidades que Aldir representa fogem da mera verticalidade que é substituída pela geometria absurda de varandas suspensas, dos edifícios enviesados, e das pavimentações com perspectiva imprópria.
> Nápole, Itália, 1991
A obra de Aldir parece existir porque a realidade é luz (na pintura tudo é uma questão de luz), e signos, formas e cores que exaltam essa luz, até quase se transformarem em arquétipos não isentos de uma sutil poesia purista.
Aldir: “Exasperada festa de cores”
Desde que o homem começou a traçar signos, a desenhar formas, e a colori-las, logo correu um perigo: o de criar uma teoria através desses signos, dessas formas e dessas cores. Mas a teoria das cores, para a qual a obra de Aldir parece remeter, é somente o pretexto para uma busca metódica, pois foge a todos os problemas da percepção, a fim de não reduzir o mundo visível a um mero problema científico.
A obra de Aldir parece existir porque a realidade é luz (na pintura tudo é uma questão de luz), e signos, formas e cores que exaltam essa luz, até quase se transformarem em arquétipos não isentos de uma sutil poesia purista.
Alguém escreveu sobre “geometria falante”, sobre “conversa com a natureza”, e um aspecto não exclui outro, mas o interessante em Aldir é a atração pela arte do Médio Oriente, por aquela arte chamada menor, que ao longo dos séculos alimentou todas as artes e que deixa que o artista utilize enredos, fundos, estilizações, onde só faltam os títulos dos mais poéticos tapetes persas. Isso não é um signo restritivo da obra do mestre brasileiro, absolutamente (com grande humildade Matisse pintou obras para tapetes), também porque Aldir devolveu à harmonia todos os tons poéticos capazes de suscitar uma resposta de cor através da conversa com as enormes, imaginárias e imensas superfície que no jogo da perspectiva levam para os limites da terra.
A conversa, nem submissa nem sequer escondida, é a do artista com o espectador para quem a obra é dirigida, e não é um colóquio lacerante, mas de tensão, sem aspectos psicológicos inúteis.
Geometrias, jogos cromáticos sutis, cidades vividas e pintadas até o limite da mais “exasperada festa das cores”, esclarecem a intenção do artista, que é a de criar uma relação entre ele próprio e os outros através de obras que se tornam signos da liberdade da fantasia (fantasia que é também otimismo para com a vida) no rigor elegante do desenho. É a aproximação pessoal de Aldir à substância do sentir, o seu critério pessoal na “visão” da realidade, na interpretação dela, favorecendo agora a velocidade e os ritmos do tempo que vamos vivendo.
> São Paulo, 28/06/1990
… Aldir fará uma individual na Itália e percorrerá a Europa dentro da coletiva ‘Artistas Geométricos Italianos e Brasileiros’, organizada pelo marchand Salvatore Cinque, em colaboração com a Secretaria de Estado da Cultura e a USP – os painéis imensos podem compor novas relações, como as cartas de um baralho, sugerindo efeitos completamente diferentes.
> Rio de Janeiro, 03/03/1991
… Aldir decidiu, em 1987, optar por um trabalho ousado: tirar as telas das paredes e coloca-las no chão, como um piso para o apreciador.
> Rio de Janeiro, 27/02/1991
… o crítico brasileiro Alberto Beuttenmüller selecionou os trabalhos dos brasileiros Arcangelo Ianelli, Hercules Barsotti, Luiz Sacilotto, Maurício Nogueira Lima e Aldir Mendes de Souza.
> Salerno, Itália, 1992
Aldir chega a uma perspectiva que, mesmo seguindo as regras construtivas de Alberti, se entrega à percepção, esboçando uma curva: há uma tentativa de recuperar, na curva, uma aderência ao plano real da humanidade, para indicar que, além do horizonte, não há o desconhecido. A curva sugere a continuidade, a aderência ao “ser”.
Aldir : conversando com a natureza
O que anima a imaginação de Aldir Mendes de Souza é a visão de uma paisagem natural: é a natureza lida nos signos essenciais, nos tons de gamas cromáticas, nas geometrias que escondem os planos até que eles se liguem na linha sutil e mental do horizonte. O próprio horizonte é um ponto da memória, um lugar em que o sonho se apropria dos labirintos da memória: um desejo que sopra assim como um vento da tarde, como o movimento que põe em desordem as geometrias destas obras expostas. É o encontro com harmonia que domina o campo visual e vai mais longe, até chegar à esfera da psique, ou seja, àqueles meandros do “espiritual”, onde as relações entre forma e cor, entre signo e espaço, estendem-se, – traçando os contornos de um novo estatuto ético. Para Aldir a natureza está além “daquele seu aparente dizer de algo mais do que ela mesma deixe de ser”, como sugeria Adorno na sua “teoria estética” , propondo à arte (às forças criadoras do homem) manter o senhorio de sua aparência para fixá-la como aparência mesma e ao mesmo tempo negá-la como irreal”. Ou restos da conversa íntima – que o artista brasileiro entretém com a natureza começam desde – longe, desde o ínicio dos anos Sessenta, com obras como “Cafezal” de 1962, ainda intensamente “figurativa” , mas onde, apesar de tudo, já é possível avistar os primeiros sinais de atenção para uma como que partitura geométrica , presente nas estilizações dos fundos. A perspectiva tende a anular qualquer aspecto matemático-funcional, a mediar a “culposa abstração” ínsita nas regras de Alberti, com a linha curva (a perspectiva antiga) que confere à percepção maior aderência à realidade.
Em Aldir desenvolve-se progressivamente a análise do campo visual, assumida de modo geométrico; dirige-se para novos percursos, introduzindo na organização pictórica elementos tirados do panorama de cada dia: penso nas colagens, nos relevos matéricos presentes nas obras realizadas entre 1965 e 1966, como Prédios, Fábricas, obras nas quais se lê uma declarada atenção para com a esfera social, para com as grandes lutas em prol dos direitos civis.
E é o combate tormentoso entre a natureza e o concreto armado – da construção urbana que marca as obras dos anos sucessivos: que com traços estilísticos de memória legeriana (veja-se o quadro São Paulo, de 1968), quer com evidentes tons de cunho “naif” (exemplo disto é a tela de 1973, que se intitula Geada), quer, ainda com acentos de polêmica e ironia, como no belíssimo Tanque Arando de 1975.
No arco temporal desse período, a pintura de Aldir registra ainda a presença de uma ambiguidade figural, essencialmente formal, elemento que o artista remove por completo a partir daquelas paisagens, as extensões de linhas e de retículas cromáticas, presentes nas obras realizadas no fim dos anos setenta. Ao lado da imagem de uma natureza reproposta pelo geometrismo particular de concepção planimétrica, se põe aquela da cidade apresentada como festa exasperada de cores, com os elevados volumes dos edifícios-arranha-céus: a relação entre o ambiente natural e o espaço de cimento é a chave da leitura que nos introduz num momento singular que Aldir viveu. Um momento sustentado por uma tensão induzida pelo contraste que o artista vive entre interior e exterior, entre o sentido original e o sobrelevar do tempo. Este é um período particular que Alberto Beutenmüller, no texto do catálogo da exposição de 1982 no Museu de Arte Brasileira avalia como “geometria do confronto”,- observando que “este confronto é o mais íntimo de sua pintura”,- exatamente por ser o mais difícil de ser desvendado”.
O quadro Cidade X Campo, de 1982 é representativo da transformação radical da pintura de Aldir, que durante o decênio dos anos oitenta encaminha-se para uma racionalização estrutural, até chegar àquele rigor ideativo e projetual presente nas pinturas recentes: esta maravilhosa escala cromática, construída em acorde harmônico com ritmo do Universo.
Aldir achou a força para libertar o campo pictórico (imaginativo) de qualquer resíduo “figural” ,de qualquer elemento que pudesse impor direcionamentos de leitura ao fruidor da obra. Chegou a uma área de pesquisa influenciada pela atenção para com os efeitos ópticos-cinéticos. Um âmbito de experimentação muito vivo na América Latina, especialmente na Venezuela, com as experiências estruturais de Jesus-Soto, com os “penetrables” (veja-se aquele de Pampatar, de 1971), mas sobretudo com Carlos Cruz-Diez, que propõe, no jogo das oposições de triângulos isósceles e nos contrastes entre cores frias e quentes, uma superação da esfera naturalista (pense-se, por exemplo, no desenho das palmeiras sobre o céu, na areia de Los Medanos).
O último ciclo realizado por Aldir representa o ponto de convergência de vários objetivos: envolve a caricatura (no sentido de leitura crítica) de alguns interessantes desenvolvimentos da experiência futurista, sobretudo a atenção dirigida ao movimento que articula e modifica o espaço chegando a uma visão sensação sustentada por uma espécie de cinetismo perspectiva. Uma paisagem proposta em perspectiva aérea, vista de relance, que parece dar-se conta dos ecos longínquos daquelas “paisagens-aeropinturas” de Gerardo Dottori, como, por exemplo, Lago Umbro, de 1942. Neste âmbito atuaram, entre os anos Vinte e Quarenta, os pintores futuristas da América Latina, como os mexicanos Doctor Atl, Fermin Revueltas e o argentino Emilio Pettoruti.
Aldir chega a uma perspectiva que, mesmo seguindo as regras construtivas de Alberti, se entrega à percepção, esboçando uma curva: há uma tentativa de recuperar, na curva, uma aderência ao plano real da humanidade, para indicar que, além do horizonte, não há o desconhecido. A curva sugere a continuidade, a aderência ao “ser”.
> São Paulo, 09/01/1992
… Aldir decidiu, em 1987, optar por um trabalho ousado: tirar as telas das paredes e coloca-las no chão, como um piso para o apreciador. (O TRECHO PARA DESTAQUE SE REPETE NO TEXTO DA MARCIA PENA FIRME)
> São Paulo, 22/01/1992
A pesquisa de Mendes de Souza não se restringiu ao formalismo tout court. Pelo contrário, o geometrismo aparente das formas, dos últimos 30 anos, serviu-lhe de instrumento para desenvolver uma análise sensorial do movimento ótico, complementada com a reapropriação da perspectiva euclidiana…
> São Paulo, 1992
Aldir Mendes de Souza ingressa na família dos coloristas com a intuição e com o olho cada vez mais aguçados.
> São Paulo, 1993
Aldir é um homem de seu tempo. Aceitou o desafio da liberdade, nãos e deixou limitar pela rigidez de teorias ou estilos. No confronto da arte pela arte e arte como vida, ele tangencia ambos. Seus quadros, aparentemente geométricos, pulsam de energia vital.
Há séculos a pintura almeja aprisionar a luz e o movimento em superfícies bidimensionais porém, a redução de idéias abstratas como conceitos de “pura visualidade”ou do não visível pertence à arte moderna. Reproduzir com tinta e pincel sensações e transmitir emoções puras, sem referências a imagens reconhecíveis, é uma das inovações características da arte de nosso tempo. A imaginação e a criatividade dos artistas através dos tempos porém, nunca tanto como em nosso século, tem como única barreira suas próprias limitações.
Fórmulas matemáticas, o que de mais abstrato a mente humana soube criar, são fonte de inspiração para artistas que procuram representar a velocidade, sem relação a qualquer fenômeno reconhecível. Leis da física e da ótica orientam o uso da cor e suas diferentes luminosidades, conforme a reação do olho humano, buscando transmitir reações definidas.
A partir de Woelfflin procurou-se compreender a arte alinhando seus estilos em duas grandes vertentes, a dionisíaca, ligada às emoções, e a apolínea, fruto da razão.
A trama, a figura da grade, é também uma das estruturas típicas da arte moderna. ela determina uma espacialidade caracterizada pela total falta de hierarquia, sem centro, sem infexões, sem qualquer ênfase à narrativa. A figura da trama transforma o espaço da tela num objeto puramente cultural. É a marca da arte pela arte na modernidade, em oposição à arte-vida.
O artista na década de 90 pode permitir-se tudo. Este século conquistou para a arte a total liberdade de criação limitada apenas, como já observamos, pela imaginação dos próprios artistas. É o momento em que todas as correntes se cruzam, se engolfam, se alimentam umas das outras e o artista maduro pode emergir em sua plenitude. Exige-se dele apenas coerência, competência, entrega. A questão hoje não é mais arte abstrata ou representativa, arte geométrica ou gestual, arte pela arte ou arte e vida. A questão é o artista e seu universo.
Essas são algumas de muitas considerações que nos vêm à mente diante das últimas pinturas de Aldir Mendes de Souza, ao tentar encontrar parâmetros para enquadrá-la em uma destas linhas de força da arte moderna.
Na verdade, porém, o artista assimilou-as todas e nào pode ser definitivamente classificado em nenhuma delas.
A teoria da grade, a primeira que nos vêm à mente, não pode ser inteiramente aplicada às pinturas de Aldir, pois suas tramas emergem do encontro de horizontais sinuosas e verticais enviesadas que partem de um ou mais pontos de fuga. Assim, embora aparentemente geométricos, os quadros representam o fluir da vida através dos ritmos e da relação das cores. E a sensação de expansão é tal que as dimensões do quadro resultam apenas de uma decisão do artista. O próprio Aldir afirma que o resultado plástico das pinturas geometrizadas em telas retangulares depende do tamanho do suporte. Apesar de se manter o mesmo artista, o mesmo tema e o mesmo período de produção, teremos diferentes exposições com conjuntos de telas de proporções diversas. Assim, serão realizadas três mostras em três espaços diferentes no campus da USP. Quadros de grandes proporções serão expostos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, de dimensões médias na agência do Banco Real e pinturas de pequenas dimensões no Instituto de Física.
Portanto nem só a grande apolínea, nem só a emoção dionisíaca, as pinturas de Aldir são formas transmutadas pela sensibilidade do artista. Ele mesmo anotou o que segue: “As pesquisas para a compreensão do universo ultimamente desviaram-se do extremamente vasto para o extremamente diminuto. O artista pode eventualmente interessar-se pela paisagem subatômica como tema de suas pinturas. É lógico que isto é uma fantasia que apenas motiva as combinações cromáticas. Segundo Stephen E. Hawking, quando um elétron troca de uma órbita para outra mais perto do núcleo, emite um fóton que pode ser observado como luz visível pelo olho humano, se o comprimento da onda for adequado. Ele pode ainda ser detectado por um filme fotográfico num detector de fótons. Nossa pintura atualmente mostra a trajetória dos fótons e as áreas coloridas formadas entre eles no espaço-tempo da tela”.
Aldir é um homem de seu tempo. Aceitou o desafio da liberdade, nãos e deixou limitar pela rigidez de teorias ou estilos. No confronto da arte pela arte e arte como vida, ele tangencia ambos. Seus quadros, aparentemente geométricos, pulsam de energia vital.
Individualista, sem pertencer a grupos ou movimentos, é uma figura constante em exposições coletivas e individuais desde os anos 60, atento ao seu mundo e ao seu momento. Seguro de si, não precisa servir ao sistema mercadológico nem se submeter a pressões.
Aldir é um pintor maduro. Sua intimidade com a tela, o pincel e as cores é o resultado de uma convivência longa e obsessiva. Já fez quadros de paisagens e obras totalmente geométricas. Nas pinturas de hoje, restam apenas relações de cores dispostas nos espaços segundo conceitos que desenvolveu no decorrer de trinta anos de pintura.
Se à primeira vista as obras em exposição nos parecem repetitivas, é porque resultam do estudo paciente e exaustivo da justaposição de cores e do cruzamento de linhas. Cada obra é uma realidade que pode ser representada por infinitas combinações.
Longe estão as paisagens rurais e urbanas bem como qualquer referência a atividades humanas. Hoje concentra-se no subatômico e nas questões da física quântica, buscando reproduzir este microcosmo através de efeitos ópticos-cinéticos sublinhados por valores cromáticos. O significado formal desapareceu. Cada quadro é uma aventura da cor: O ritmo é criado através da repetição.
Ao expectador cabe embarcar numa cor e viajar através do tempo. Aldir Mendes de Souza pinta para o olho – o olhar que viaja capturado por uma cor é levado ao infinito. Impossível permanecer indiferente à forte presença física das grandes telas. Aldir é essencialmente um colorista. Trabalha na vertente da “pura visualidade” porém, não se desvincula da vida. O mundo que hoje representa é o da realidade subatômica, visível unicamente através de aparelhagens especiais. A física quântica e a geometria fractal apenas orientam teoricamente estas construções.
Suas pinturas nos trazem à mente explosões moleculares apresentadas em filmes científicos ou de ficção científica, ou mesmo em representações matemáticas produzidas por computações gráficas. O efeito marmóreo é alcançado ao usar apenas uma camada de tinta sobre a tela, trazendo também à memória vitrais, ou mesmo pisos.
Aldir se dispõe a reproduzir estes efeitos manualmente, diante de uma tela tradicional, bidimensional e com um pincel e uma paleta na mão. Usando diversos pontos de fuga cria vetores de expansão e introduz ruídos que perturbam as suaves ondulações. Cada cor é introduzida num espaço anteriormente traçado com o auxílio de réguas especiais. A proposta geral é resultado de estudos e reflexões porém, a distribuição das cores e suas relações é fruto de longos anos de trabalho colorísticos.
> São Paulo, 1994
Mestre da cor, o paulistano Aldir Mendes de Souza exibe por mais uma semana suas telas geométricas.
> Rio de Janeiro, 1995
A partir do momento em que chegou à abstração, Aldir conseguiu ser, ao mesmo tempo, muito coerente, criando um estilo inconfundível e muito solto e leve.
Aldir Fazendo mais um lance de dados
A pluralidade de opções, combinações, premissas numa direção e conclusões saindo para outras, que caracteriza a pós-modernidade (entre tantos mais comportamentos que questionam a ordem antiga e dizem não às ortodoxias), pode considerar-se uma busca , pelo avesso, da reorganização do cosmos após tempos de caos. No início do século, o filósofo alemão Max Scheler, em dois ensaios complementares (“O Posto do Homem no Cosmos” e “A Idéia do Homem e a História”) já apontava nossa crise de identidade ontológica: pela primeira vez o homem não sabia o que era, mas pelo menos sabia que não o sabia (grifos originais). Neste final de século, sob a égide e por intermédio da pós-modernidade, colocou-se talvez o epílogo dessa questão fundamental, que quase todas as tendências do modernismo (exceto as construtivistas rigorosas, derivadas do idealismo de Mondrian) abordaram com ênfase ou desesper, maiores ou menores.
Com essa introdução, não estou pensando em lançar a tese esdrúxula de que o pintor Aldir Mendes de Souza seja um artista pós-moderno – mas sim, talvez, evidenciar que há em seu relacionamento com a arte, com sua linguagem, com o próprio conceito e exercício da expressão, uma liberdade rara, e também uma busca de reorganização pessoal do universo. Em princípio, Aldir é um conservador (no mesmo sentido em que são conservadores, hoje, no Brasil, uma Tomie e um Ianelli; não no mau sentido de reacionário ou acadêmico). Não implodiu sintaxes nem questionou funções, não inventou técnicas ad hoc nem renegou as antigas. Pelo contrário, Sabiamente delimitou, com precisão, o escopo de sua pintura, situando-a no âmbito do que há alguns anos se chamava, em toda a América Latina, de “geometria sensível”. Talvez o rótulo esteja meio fora de moda (pelo menos não o ouço há muito tempo), mas o fenômeno a que ele se refere continua plenamente vivo.
O que é “geometria sensível” já foi suficientemente discutido para que tenhamos que redefini-la em detalhe. Concentremo-nos em dois aspectos: primeiro, a prevalência da intuição sobre qualquer projeto puramente intelectual, qualquer conjunto de regras anterior e externo a própria obra; simboliza-o a famosa frase de Volpi, quando indagado sobre o que significara para ele o concretismo: “Não sei. Nunca pensei nisso”. Em segundo lugar, superpondo-se à estrutura, o gosto pelo ligeiro capricho (no sentido goyesco), pelo prazer levemente sensual da matéria, pela não definição hard edge dos contornos. A junção, em suma, de um “claro raio ordenador”(para lembrar um verso de Drummond) com um nítido, irrecusável estímulo afetivo.
Isso já bastaria para definir o universo em que se move Aldir – hoje, um colorista seguro (já escrevi antes sobre esse aspecto específico de sua produção), cujas telas enxadrezadas derivam, na verdade, de pinturas figurativas mostrando cafezais. A partir do momento em que chegou à abstração, Aldir conseguiu ser, ao mesmo tempo, muito coerente, criando um estilo inconfundível e muito solto e leve. Isto deriva, acredito, do próprio temperamento do artista, irriquieto, bem humorado, empreendedor e ativo. Por isso, aliás, nunca estabeleceu para si mesmo um conjunto de patterns formais, como o fez Volpi, dentro dos quais permutar cores, como Albers, nem mesmo uma linha única de ação, como Ianelli.
Talvez sem o saber nem o querer (e entra aqui o pós-modernismo em cena), criou para seus quadros ema espécie de “ordem heteróclita”, na qual se agitam planos interagentes, frentes e fundos ambíguos, retas estáveis e curvas dinamizantes; enfim, desde o ethos apolíneo de Volpi, e suas pinceladas ritmadas e translúcidas, até o gozo dionisíaco da optical art.
Sendo, por outro lado, um homem de ciência, Aldir (percebo-o bem) gostaria de encontrar alguns fundamentos mais racionais no seu trabalho. Para uma fase exposta há dois anos na FAU da USP, por exemplo, significativamente intitulada “Paisagem Subatômica”, foi escavar complexas teorias sobre órbitas de elétrons e geração de fótons, para descobrir-se o formulados (naturalmente, metafórico) dessas imagens. Em 1990, no Museu de Arte Contemporânea, apresentou seu “Círculo Cromático”, dando-lhe o revestimento (a meu ver, desnecessário e inexato) de instalação e projeto conceitual. Prefiro ver Aldir como um artista que pinta baseado no princípio do prazer, o seu e o do espectador; mais ainda que pinta porque é homo ludens, como no conceito de Huizinga, e descobriu no ato da criação o jogo mais fascinante, arriscado e intenso.
E aí está Aldir, atirando uma vez mais seus dados (cujo lance, por certo, não abolirá jamais o acaso). Quer tocar-nos dupla e muito pós-modernamente com a conciliação inesperada de extremos: de um lado, a intimidade; de outro, o brilho, a excitação, a garrulice. A serviço desse propósito legítimo, põe o melhor de sua vitalidade de artista e de homem.
> Rio de Janeiro, 1996
Persistente e sempre coerente em suas metas, Aldir Mendes de Souza destaca-se hoje entre os melhores pintores brasileiros.
Alegoria da Cor
A propósito da pintura de Aldir Mendes de Souza já se falou de geometria sensível, fantástica, simbólica, de “geometria parlanti”, de geometria telúrica, da terra e do campo, de “geórgicas geométricas”, de geometria do ser. Hoje, como que exausto de tanta adjetivação ou porque vive a iminência de novas configurações especiais em sua pintura, Aldir prefere falar de topologia. Mas tanto a geometria anterior como a topologia de agora, são frutos da intuição e não do cálculo e da medida. Para desenhar a estrutura básica de suas composições, que consiste no cruzamento de linhas, formando uma espécie de grade ou treliça, Aldir emprega diversas réguas – retas, curvas, ondulantes – mas de forma totalmente arbitrária e não planejada.
O resultado é a multiplicação de perspectivas ao mesmo tempo convergentes e divergentes. Na verdade, como iremos ver, o que unifica o espaço não é a geometria, mas a cor, o ritmo quase sensual da pincelada. Aldir Mendes de Souza é, ademais de intuitivo, um autodidata. E uma das características do autodidatismo é a demora. Diferentemente do virtuose, que procura resolver rápida e superficialmente as questões apresentadas, o autodidata experimenta, ensaia, repete, faz e refaz o seu projeto até encontrar a solução ideal. Esta demora, não apenas cria uma afetividade maior do artista com a sua criação, como acaba por dar à sua obra uma coerência interna.
Não dispondo das formas elaboradas no receituário do aprendizado acadêmico, o autodidata tem um método empírico de trabalhar – na base do erro e do acerto. Aldir avança com vagar, tendo sua própria pintura como referência. Este método não é menos consistente em seus resultados do que aquele fundado na racionalidade criadora, e tem a vantagem de não se tornar mera ilustração de teorias artísticas ou dogmas científicos.
Aldir sempre foi, continua sendo um paisagista. Claro, não se trata de recuperar nostalgicamente uma paisagem vivida, de fixar na tela um lugar específico – campo ou cidade – carregada de histórias e de subjetividade. É uma paisagem inventada, a criação de um signo. Um conceito. Com efeito, foi nas páginas dos suplementos agrícolas dos jornais paulistas, que Aldir encontrou, por volta de 1962, a imagem do cafezal, que é, de fato, o ponto de arranque de sua démarche pictórica. Vale dizer, ele já partiu de uma imagem de segunda geração, permeada pela reprodutibilidade técnica. Em certos momentos de sua fase inicial, Aldir até procurou dar uma dimensão crítica ao assunto, criando metáforas políticas. Mas, a seguir, num crescendo geometrizante, foi reduzida a paisagem à sua estrutura mínima, essencial. Surgem, então, diagonais que cruzam o campo/tela em várias direções até se perderem em “montanhas invisíveis”, muito além da linha do horizonte, que aos poucos vai deixando de existir.
Na verdade, ao longo destas três últimas décadas, Aldir oscilou entre tratar a paisagem como tema e como imagem. Ao geometrizá-la chegou bem perto da abstração, nunca porém à geometria pura, como na neoplástica de Mondrian. Mas num processo inverso, que tem muito a ver com uma espécie de entropia característica do autodidatismo, ele, muitas vezes, procurou tematizar suas abstrações. Com efeito, a partir de um certo ponto de desenvolvimento de sua obra, seria mais correto falar-se de “campor de cor”, de áreas ou movimento da cor, como que a indicar que não é geometria, mas a cor o verdadeiro conteúdo de sua pintura. Porém, como ele deixa claro no título de algumas séries recentes, estes campos de cor são, na verdade, releituras da paisagem rural.
Um leitor mais atento poderia observar que com o desaparecimento da linha do horizonte, desaparece também a própria paisagem. Seria verdade, se tratasse apenas de campos lavrados, de uma paisagem vista do interior do planeta Terra. Porém, a partir da cosmonáutica, a visão do homem de transformou radicalmente. A linha do horizonte efetivamente deixou de existir e, no espaço, fora da nave, o homem como que flutua e engatinha como um bebê no grande ventre exterior do universo. Nas primeiras abordagens do tema, Aldir agia como se estivesse contemplando a paisagem de um planador, que tocado pelo vento acompanhasse mimeticamente as ondulações e sinuosidades dos cafezais. Mas estes foram sendo transformados, aos poucos, em enormes tapetes voadores, em patchworks monumentais, em puzzles gigantescos. Hoje, a sensação que temos diante de algumas telas de Aldir, é a de estarmos contemplando a paisagem do interior de modernos aviões, totalmente computadorizados, em voos rasantes ou na iminência do pouso. Há qualquer coisa de cinético nestas imagens aparentemente abstratas, uma herança futurista ou vorticista. Como em certas obras de Malevitch, Kupka ou mesmo Flexor, os planos de cor, como que emantizados por uma força desconhecida, parecem atraídos para fora da tela.
Há uma física e uma química na pintura atual de Aldir Mendes de Souza, isto é, uma dimensão abstrata (geometria) e uma dimensão orgânica (cor). A geometria, a física e a matemática, querem medir o universo, calcular seu peso, dar-lhe uma forma. Sustentando esse esforço por mensurar, pesar e figurar, está o homem – que deseja ser a medida e a alavanca do universo. Porém, além do horizonte o que temos é o vácuo, o abismo. O infinito não tem teto nem fundações. O que sobra então, é a excitação do desconhecido, a excitação do ser. Metafísica.
Nas primeiras paisagens rurais de Aldir, prevalecia o arredondado dos grãos, as árvores, morros e elevações. Logo, as curvas cederam espaço às diagonais inquietas, gerando perspectivas erradias, e criando deformações no campo visual. Nos trabalhos mais recentes, a curva volta a se insinuar, ainda que de forma virtual. Do ponto mais alto o artista percebe a curvatura da terra. E sente-se bem. Esboça então, a curva, como se buscasse a ordem, a finitude, o ponto de partida. Como observou argutamente Massimo Bignardi, em 1990, há “uma tentativa de recuperar, na curva, uma aderência ao plano real da humanidade, para indicar, que além do horizonte não é o desconhecido. A curva sugere continuidade, a aderência do ser. Esta aderência é reforçada pela cor e também pela matéria pictórica. A geometrização da paisagem teve como contrapartida a presença cada vez mais afirmativa da cor. De fato, Aldir evoluiu de uma pintura temática para uma pintura essencialmente pictórica e neste ponto acentua-se a influência de Volpi, autodidata e intuitivo como ele. Se a geometria, multiplicando os pontos de fuga como que expulsa a composição para fora dos limites da tela, a cor traz sua pintura de volta à superfície. A cor dá à sua pintura um corpo – que respira, arde e exala prazer e sensualidade. Aldir não trata a cor à maneira albersiana, tencionando duas cores para obter uma terceira, até então inexistente, nem por indução, à maneira de Cruz-Diez, mas promovendo veladuras e superposições, cujo efeito é sempre imprevisível.
Persistente e sempre coerente em suas metas, Aldir Mendes de Souza destaca-se hoje entre os melhores pintores brasileiros.
> Santo André, 1998
Ao se concentrar no problema da cor, Aldir se mostra da família de um Albers (cuja famosa série “Homenagem ao Quadrado” é toda feita de permutações cromáticas dentro de um mesmo desenho), um Volpi, um Arcângelo Ianelli; é uma família de sensibilidades requintadas que demanda do espectador sensibilidade e atenção.
Bonomi e Aldir: Santo André apostou certo
Acredito que diante da obra de um determinado artista todo mundo sempre têm, como eu, duas curiosidades simétricas. Uma, a de especular para onde ele vai – que caminhos tomará sua linguagem, no inevitável diálogo que terá, ao longo do tempo, com o resto da produção contemporânea. Outra, a de saber de onde ele vem, que tipo de obra fazia antes, como se expressava, e como veio desaguar em suas propostas atuais. Como foi (e na verdade é) o seu percurso? Sofrido? Coerente? Muito ou pouco individualizado? Sujeito ou não a influências? Registrou, como um todo, um crescimento interior e um amadurecimento de seus recursos expressivos?
Ambas as curiosidade – que poderiam ser chamadas por outros nomes bem mais complicados; por exemplo, exercícios de leitura analítica e diacrônica, retrospectiva , só e/ou prospectiva – nascem de nossa necessidade de conhecer, de inteligir a criação, de refletir sobre ela, como mecanismo auxiliar para a mais completa fruição da obra de arte. A fruição da obra é um processo sensorial, até emocional, mas também e fundamentalmente um processo intelectual; não se dá num passe de mágica.
Assim, ao contrário de outras experiências que se tornam desgastadas e redundantes com o uso, a da arte, com sua potencialidade infinita, só se enriquece com o maior conhecimento do objeto.
A quinquagésima nona audição de uma sinfonia de Mozart não só não será nunca mais desinteressante, como será seguramente mais instigante, gratificante e profunda que a qüinquagésima oitava. Analogamente, saber que, no final da história, o pobre Otelo matou Desdêmona e foi preso não atrapalha o prazer de assistir, mais uma vez e sempre, à peça de Shakespeare. Isso porque na grande arte pesa mais a forma que a coisa contada; a linguagem e não o assunto.
Mas voltemos ao começo – e as curiosidades. Todos conhecem Maria Bonomi como uma grande gravadora, um nome ilustre da arte brasileira – e hoje em dia, também uma escultora para espaços públicos, autora, por exemplo, de belos relevos em concreto, instalados em fachadas de prédios e em estações do metrô de São Paulo. Todos conhecem também Aldir Mendes de Souza como um maduro pintor abstrato geométrico, cuja preocupação fundamental é a interação entre cores e matizes, resultando em ritmos no espaço.
A presente exposição enriquece nossa leitura de ambos, ao permitir sabermos, um pouco, o que fizeram a certa altura do passado. Em finais da década dos 60, começo da dos 70, tanto Maria quanto Aldir participavam dos salões de Santo André – cuja pinacoteca possui obras suas dessa época. A idéia de cotejar os dois momentos, ampliando as amostragens, foi apenas uma decorrência natural (e por isso mesmo harmoniosa) de tudo o que se disse até aqui.
Não se trata, evidentemente, de duas retrospectivas reduzidas, vista que não se inclui a produção intermediária. Uma retrospectiva, além de inviável, por motivos diversos, acabaria ficando uma síntese demasiado comprimida, com certo ar de colcha de retalhos. Entretanto, se não aparece a produção de muitos anos, não fica, tampouco, um gap, um buraco a ser preenchido. Desde logo isso prova que, no caso da evolução destes artistas, houve, sim, coerência e um processo de crescimento contínuo sem rupturas nem contradições.
Foi justamente na segunda metade dos anos 60 que a gravura de Maria Bonomi cresceu, inclusive no sentido literal da palavra. Até então, a gravura brasileira era essencialmente uma arte intimista – “a música de câmara das artes visuais”, como a definiu essa outra gravadora maior que é Fayga Ostrower. Coube a Maria, pioneiramente, mudá-la de patamar, introduzindo entre nós uma gravura sinfônica que ocupa o espaço com as mesmas ambições e direitos que uma pintura, com a mesma embocadura, por assim dizer, embora não perca seu caráter de artesanato exigente.
Na mesma época, Maria introduzia também em sua linguagem uma peculiar combinação entre estruturas geométricas e gestos, entre organização e expressão, que foi sua resposta pessoal aos desafios da abstração no momento.
Podemos ver em “O Pente, “Safo”, e nas seis variantes de “Forma”- seis gravuras recentes, recorrendo a cores e transparências diferentes, mas utilizando as mesmas matrizes – o estado atual a que ela conduziu tal resposta. Continua majestosa, organizada, mas expressiva e brilhante. A exibição ao vivo de algumas matrizes permite ver, também, de onde nasceram seus relevos e suas esculturas; a chegada à terceira dimensão era uma conseqüência previsível. Foi também crescimento e não desvio.
Exatamente estas mesmas palavras se aplicam à trajetória de Aldir Mendes de Souza, que evoluiu de uma pintura de natureza figurativa (embora nunca narrativa, descritiva), para abstrações geométricas estritas. Observando sua produção de qualquer época (encontram-se aqui quatro momentos diferentes), fica claro que o tema lhe serviu sempre e apenas como pretexto para a construção do espaço e para a aplicação da cor. A paisagem, tanto a rural, quanto a urbana, era um subsídio e um pretexto. Conseqüente e coerentemente optou por ser, afinal um pintor permutacional e um colorista.
Quer dizer: fez uma escolha entre as diversas vertentes e tendências que existem hoje, a partir das especificidades internas da linguagem da pintura. Na década de 70, avultou uma tendência ”selvagem”, neo-expressionista, cujo componente principal era o gesto. No final dos anos 80, falou-se muito nos “matéricos”, que por sua vez trabalhavam predominantemente o relevo, a superfície, chegando a abolir a composição e a cor. Em vários outros momentos, pelo contrário, privilegiaram-se justamente, a composição, a estrutura, a ordem e o rigor; por exemplo, no concretismo. Ao se concentrar no problema da cor, Aldir se mostra da família de um Albers (cuja famosa série “Homenagem ao Quadrado” é toda feita de permutações cromáticas dentro de um mesmo desenho), um Volpi, um Arcângelo Ianelli; é uma família de sensibilidades requintadas que demanda do espectador sensibilidade e atenção.
Enfim, um pouco de nossa curiosidade fica, assim, satisfeita. E o testemunho fica dado de que, quando o Salão de Santo André destacou e premiou Maria Bonomi e Aldir Mendes de Souza, estava com as antenas ligadas e apostou certo. É esta aliás, a meu ver, uma das funções precípuas de um salão, instituição que sempre apoiei (apesar do nome que soa antiquado). Que daqui a trinta anos outros balanços como este estejam sendo feitos nesta mesma sala, com os jovens artistas que neste instante apenas começam a despontar em salões.